sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Minha caixinha de lembranças e saudade eternas

Um amigo que fiz pela internet resolveu escrever uma história e me convidou a fazer isso junto com ele, a quatro mãos. Era um cara muito legal e achei que poderia ser uma experiência bacana. Então, aceitei, e a primeira parte do texto ele meu enviou com a instrução de que eu deveria dar continuidade à história. Logo de cara, percebi um tom meio pesado nas palavras, umas linhas reflexivas de alguém que pressentia ou sentia algo não muito bom, que passava por uma fase difícil. Para não aprofundar aquele baixo astral, mudei “só um pouquinho” o rumo e, à minha maneira, inseri umas reviravoltas amalucadas, contando um bizarro acontecimento de um vizinho que matava gatos e depois saía pelo meio da rua gritando, altas horas da madrugada. Era proposital: um devaneio, um escapismo que achava necessário naquele momento.

Quando meu amigo leu aquilo, nitidamente estranhou, mas continuou. Coloquei-o num território desconhecido. Talvez ele estivesse aguardando algo mais sério, profundo, maduro; se enveredar por um caminho mais desafiador. Possivelmente gostaria de uma narrativa mais filosófica, voltada à experiência de vida, à existência em si. Não sei se fiz o certo, mas naquele momento achei que seria melhor assim. Por fim, ele aceitou aquela reviravolta por mim proposta e continuou a escrita, não sei se a contragosto, e assim seguimos por alguns meses. Ele escrevia um trecho e me mandava; eu dava continuidade, e devolvia - e assim sucessivamente.

Não, não era uma história digna de publicação, creio eu, mas estava divertido fazer aquele exercício. Para mim, pelo menos, estava. A gente ia narrando fatos e acontecimentos e deixando uma “ponta” para o outro, que remendava e apresentava novos cenários. E assim a gente ia desenrolando a história... Mas eis que por uns 15 dias, mais ou menos, não recebi mais nada. Um silêncio pairou no ar, em nossos chats e salas de bate-papo.

Não nos falávamos com tanta frequência, mas pelo menos uma vez por semana. E o mais curioso: não o conhecia pessoalmente, apenas pela internet. A distância não impossibilitou de considerá-lo um grande amigo. Estranho isso, e nunca pensei que uma grande amizade poderia nascer dessa forma, sem nunca ter visto a pessoa cara a cara. Não o considerava apenas um amigo de internet, mas sim um amigo da vida. A gente até cogitou em se encontrar para nos conhecer pessoalmente, tomar uma cerveja em algum bar (assim como eu, ele era fã de cerveja), mas isso acabou nunca acontecendo.

“Cara, você viu a minha última parte do texto?”, mandei para ele. Passaram-se dois, três, quatro dias. Nada. Depois soube, por meio de um outro camarada que fiz pela internet, que o meu amigo estava no hospital, internado. Alguns outros dias passaram e descobri seu número de Whatsapp – o que me surpreendeu, pois conhecia sua resistência ao uso de celulares, redes sociais, etc. Então trocamos mais algumas mensagens, por texto e voz, sobre o tratamento que ele fazia - inclusive me confidenciou a agonia de não pode sair dali. Estava preso no hospital, em uma cama. Foram poucos dias assim, trocando poucas mensagens, e as últimas que ele enviou, em áudio, já evidenciavam uma pessoa sem forças, com voz embargada, de brilho fosco, totalmente diferente do que era, certamente já atordoada pelos remédios. Mais uma vez, mandei uma, duas, três mensagens, sem obter resposta.

Em um certo dia acordei e senti um frio na espinha, uma sensação esquisita. Mas não pensei imediatamente em meu amigo e em sua situação complicada – acreditava que ele iria se recuperar, afinal. E fui levando o dia a dia, mas sempre com aquele sentimento cinzento sempre que pensava nele e em nossa história inacabada.

Não demorou muito fiquei sabendo de sua morte. E aí o que eu nunca imaginei que seria possível aconteceu: senti a morte dele como se fosse uma pessoa próxima que convivia diariamente comigo. Seres humanos são mesmo criaturas incríveis e totalmente indecifráveis. Apenas por meio da comunicação, por fala e escrita, à distância, conseguimos nos conectar de uma forma como se estivéssemos morando na mesma cidade, saindo juntos para tomar uma cerveja ou jogar uma partida de um jogo qualquer.

Nosso assunto principal eram os jogos, os videogames e os livros, e apenas trocando ideias sobre isso, sem nunca termos apertado as mãos, nos tornamos grandes amigos – assim eu o considerava. E sinto saudade dos nossos papos, das nossas risadas e tiradas de sarro. E fico lembrando de outras pessoas, parentes e amigos, que fizeram parte de minha vida e também já se foram. E a vida continua passando e, cada vez mais, minha mente se torna uma caixinha de lembranças, onde guardo histórias e experiências, e de saudades eternas.

Felipe Betschart
Janeiro 2024

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